Signados 2

Hugo Virgílio
4 min readSep 18, 2020

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Novos signos, velhas polêmicas

Origem da imagem

Leia aqui a primeira parte.

se passaram três anos desde que Fulano fugiu da perseguição em razão do seu mais consagrado trabalho: a classificação e interpretação daquilo que chamou de Signos. Um tipo de marca que surgiu nas testas das pessoas e que Fulano percebeu se tratar de uma confissão involuntária dos delitos passados e presentes do portador.

Os signos chegaram para ficar e foram instrumento de todo tipo de arbitrariedade, desde a mais absoluta intolerância aos delitos listados entre os crimes anteriormente previstos em lei até a transformação em tabu a exibição da própria testa. Em um extremo, os signos constituíram confissão questionada apenas na interpretação de um ou outro perito e no outro extremo fez prosperar uma nova indústria de indumentária para cobrir o signo — despir a testa se tornou ato de extrema intimidade, reservada aos mais próximos. Mesmo sem se aprofundar na compreensão dos significados, todos tinham noção das formas derivadas de determinados delitos. Alguns países passaram a enfrentar enorme aumento nas taxas de suicídio.

O Dr se casou e teve uma filha. Foi com elas que vivenciou o primeiro momento daquilo que revolucionaria o que a ciência aprendeu sobre os signos.

Fulano e Lita estavam brincando com Mamé enquanto a menina corria na grama feliz da vida, ele olhou para sua esposa e viu de forma muito evidente a marca na sua testa mudar bruscamente, tanto de formato quanto de cor, enquanto ela sorria largamente. Com menor rapidez, esta reassumiu a forma com a qual ele já estava acostumado enquanto assistia a tudo mudo, boquiaberto, com olhos arregalados, rosto pálido e cara de bobo.

Naquele instante ele se deu conta de várias coisas: ele ia novamente estudar essas marcas nas testas, ia novamente apresentar isso para o mundo, causar outro reboliço global, ser chamado de tudo que é nome, e fugir de novo.

De volta do choque, pôs-se imediatamente a fazer várias perguntas meio sem sentido para Lita, que obviamente não entendeu nada e logo se irritou. Novamente, sua marca mudou de cor e forma, mas dessa vez durou um pouco mais enquanto o olhava irritada, o que deu a ele a oportunidade de fotografar o signo, para coroar a irritação da mulher que julgou se tratar de deboche.

Ao longo daquele dia ele fotografou várias marcas momentâneas de sua esposa em momentos de alegria, de irritação e de tantos outros sentimentos que ele foi incapaz de associar de imediato, mas que guardou para análise futura. Antes de se debruçar sobre as imagens, revendo a sucessão dos fatos, lhe ocorreu a primeira hipótese: as marcas são momentâneas por se tratarem de circunstâncias elas mesmas efêmeras, o que difere de um delito marcado na memória e tantas vezes acentuado pela culpa.

Foi com Mamé que o Dr teve sua maior surpresa quando ela correu até ele após um sonoro raio. Naquele instante ele pôde perceber que apesar dela até então não ter um signo formado, manifestou um signo momentâneo e de cor profunda que ele nunca tinha visto. Dessa vez ele teve a sensibilidade de, ao invés de tirar uma foto, perguntar o que ela sentia, ao que ela respondeu — estou com medo, papai.

Naquele instante ele desvendou a charada: a mudança nos signos ocorre em razão dos sentimentos e, dada sua natureza momentânea, também são momentâneas as mudanças de cor e forma. Sabido isso, o esforço de classificação foi bastante abreviado, uma vez que tanto ele quanto a esposa se esforçaram em expressar verbalmente os próprios sentimentos.

Tão logo o novo manual de análise e compreensão das mudanças dos signos foi concluído, o Dr Fulano apresentou o trabalho para o mundo e novamente começou o debate.

Os primeiros segmentos afetados foram, novamente, o jurídico e o político. Os advogados não gostaram nada da novidade pois já não era mais possível mentir em juízo sem que fosse logo descoberto. E no parlamento as brigas ficaram tanto mais quentes quanto mais engraçadas, uma vez que os mais espertos se dedicavam a estudar o comportamento dos signos e os utilizavam com maestria aproveitando as testas nuas de seus pares. Inclusive, dessa vez a Deputa nem viu brecha para explorar a novidade, já que agora a verdade, ou a falta dela, estava a olhos vistos.

A rica indústria de produtos para cobertura de testa rapidamente sumiu, agora quem cobre o próprio signo passou a ser visto como mentiroso ou algo pior.

Os traficantes, incapazes de esboçar um sentimento positivo ou neutro, sumiram. Logo todos eles se mataram uns aos outros pois, cada vez que se percebia a mentira ou a traição, não faltava bala para vingar o fato, causando muito medo de mentir, de trair e mesmo de delinqüir. O que causou o maior estrago foi a evidência do medo: nada, em ambientes tão hostis, enfraquece tanto uma pessoa quanto fazer saber que se está com medo.

Mamé, num lampejo de genialidade infantil, perguntou para o pai: porque somente as coisas feias ficam evidentes nas testas das pessoas?

Depois de muito investigar, ele chegou à conclusão de que os fatos positivos e edificantes têm mais intenso efeito no signo momentâneo, em especial de alegria e satisfação. Mesmo assim, a pergunta de Mamé permanece sem resposta: por que atitudes positivas não deixam signos expressivos que se manifestem de forma duradoura?

Confira aqui a terceira parte.

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