Signados 3

Hugo Virgílio
9 min readSep 29, 2020

Ainda não é tempo de parar a busca e descansar

Origem da imagem

Leia aqui a segunda parte ou desde o começo aqui.

Mais uma vez Dr Fulano e seus estudos mereceram destaque por este que vos fala. Diferente porém, foi o desfecho dos fatos, já que ele previra várias repetições, culminando mais uma vez na covardia, na fuga e no ostracismo. Quando da sua descoberta daquilo que batizou de signos momentâneos, no geral, as pessoas já estavam acostumadas à idéia de levar na testa um signo que continha histórico de todos os seus grandes e pequenos delitos, por mais desconfortável que isso fosse. Acrescentar o fato de que se poderia, a partir de então, ler as emoções, tão somente aumentou o desconforto, mas não a ponto de justificar nova fuga.

A terceira descoberta de Fulano no estudo dos signos, no entanto, se iniciou no fim do relato anterior, quando Mamé, sua filha, com outras palavras, perguntou de forma muito perspicaz: por que atitudes positivas não deixam signos expressivos que se manifestem de forma duradoura?

Descontente em apenas responder para a filha que os signos momentâneos manifestavam emoções positivas e negativas, pôs-se a procurar a resposta.

Sendo ele próprio um cidadão mais vivido, podendo-se dizer até que não é nenhum jovem, ou mesmo que já é de meia idade, Dr não tinha gosto pela tecnologia e muito menos por seus meandros técnicos, incompreensíveis para si. Assim, as infinitas possibilidades que esta ferramenta poderia lhe oferecer também passaram desapercebidas. Foi seu irmão, engenheiro de software e aficionado por tecnologia, quem, vendo um entre tantos dos catálogos de signos com relatório de análise, perguntou: por que vc não submete esse material a análise de imagem com inteligência artificial?

Então, naquela tarde quente e seca, Fulano teve, ao mesmo tempo, uma surpresa seguida de enorme entusiasmo com os resultados que sequer conseguia imaginar, e um tanto de vergonha, tanto por nunca ter lhe ocorrido a possibilidade de utilizar tecnologia, quanto por não ter a mínima idéia de como fazê-lo ou mesmo de por onde começar. O próprio irmão o ajudou nessa parte, começando por digitalizar os signos catalogados com seus respectivos relatórios e esboçando o primeiro modelo de análise. Junto à digitalização do que já tinha, foi iniciada uma grande campanha para preenchimento do banco de dados de signos junto com um minucioso formulário contendo os principais delitos e sentimentos. Posteriormente havia a possibilidade tanto de validar o que foi informado no formulário, confrontando-o com os resultados contínuos da análise, quanto a perspectiva de expandir o que a leitura do signo apontava com respostas cujas perguntas não estavam no formulário e poderiam ser confirmadas.

Após tamanho esforço, Fulano e seu irmão, Butano, concluíram a versão 1 do SiLAS, Sistema de Leitura Avançada de Signos, conseguindo observar as primeiras conclusões. Silas, como ficou conhecido, foi capaz de identificar que cada signo é dividido em três setores, dispostos da seguinte maneira:

  • um setor para os delitos permanentes, os primeiros observados por Fulano;
  • um setor para os delitos momentâneos, os que indicam a emoção predominante em determinado momento;
  • um novo setor até então desconhecido e sem papel distinguível;

Esse novo setor era intrigante e Silas apontou que esteve presente em grande parte das imagens analisadas. Ou seja, esses signos, agora batizados de mediais, posto que ficam no meio entre os outros dois, estavam presentes sem serem notados, por isso mesmo não se conhecia seus significados.

Para resolver essa questão os irmãos recorreram aos voluntários da campanha. Entre os participantes do estudo foram selecionados 10% do total para realização de entrevista gravada em vídeo, tomando o cuidado de deixar de fora os já identificados como omissos, mentirosos ou manipuladores. A primeira e a segunda rodada de entrevista não revelaram nada. Pôde-se notar a presença de um padrão favorável somente na terceira, quando um dos entrevistadores, que era psicólogo e espiritualista, fugiu do protocolo utilizando uma coleção própria de perguntas em mais de 50 entrevistas.

Apesar de 50 relatos ser um número muito pequeno para se identificar padrões descritíveis sob análise do Silas, foi suficiente para a equipe aceitar as sugestões do psicólogo na expansão do formulário original, abordando muitos outros aspectos ignorados inicialmente. Com esse novo formulário foi possível seguir adiante com o estudo, aplicado, agora sim, a todos os participantes.

Assim foram descobertos os signos intermediários, informando o estado emocional não-momentâneo das pessoas.

Explicando com exemplos:

  • imagine o signo medial de uma gestante que esteja muito feliz com a chegada de seu rebento, esta prolongada felicidade será apresentada;
  • imagine a alegria de um cidadão recém contratado para um novo emprego após longo período sem oportunidade de trabalho; a alegria e o entusiasmo aparecerão no signo medial;
  • imagine ainda distúrbios graves, tais como síndrome do pânico, ansiedade, depressão e entenda que esses também se manifestam no signo medial.

Há outros signos mediais igualmente interessantes e freqüentes, como a manifestação de mágoas e paixões.

Em resumo, os signos mediais expressam sentimentos que apesar de mais duradouros que alguns instantes, duram o bastante para deixar sinais, mas não o bastante para serem permanentes. São emoções que tendem a mudar ou sumir ao longo do tempo, à medida que esses sentimentos evoluam ou regridam para outros ou cessem de uma vez.

Outra descoberta derivada das análises de Silas foi o curioso ineditismo do arrependimento, que apesar de ser tão comum quanto a maioria dos demais sentimentos, não tinha sido identificado anteriormente. Sua manifestação é bastante peculiar: iniciando a aparição no signo momentâneo, normalmente de forma mais longa que os demais e se destacando acima de qualquer outro com o qual concorra; em seguida, à medida que perde intensidade no signo momentâneo, aparece no signo medial, demonstrando se tratar de emoção duradoura, e é nessa fase que se percebe o fenômeno mais impressionante — o delito de que se arrependeu muda de cor, de intensidade, de aspecto, perdendo destaque entre os demais, se assemelhando a uma cicatriz de queimadura e tendo sua expressão drasticamente diminuída; com o tempo se torna praticamente um novo signo.

O arrependimento, obviamente, não impede que o sujeito reincida no mesmo erro. Nesses casos, por cima da cicatriz, que continua aparente, aparece nova marca. Essa é muito mais interessante, dado que, junto à evidência do delito reincidente, há também a expressão da teimosia. Só não se manifesta a estupidez em quaisquer dos signos por não se tratar de delito ou sentimento momentâneo ou duradouro… Afinal se assemelha a uma característica orgânica que se evidencia sem necessidade dos estudos do renomado Dr Fulano ou do seu engenhoso Silas.

Observando os resultados referentes ao arrependimento, os irmãos perceberam que antes de usar a inteligência do Silas, sem motivo aparente, não havia a prática de reanálise antecedida de atualização dos signos dos voluntários e dos respectivos formulários. Após adquirido o hábito de fazê-lo, foi possível perceber a evolução do signo dos participantes de acordo com suas ações e emoções.

Concluído e publicado o estudo, os dados foram anonimizados, tornados públicos e abertos para análise de qualquer interessado. Na publicação consta a participação de Butano e menção ao psicólogo rebelde e suas perguntas inesperadas.

Exceto por um detalhe que será relatado logo abaixo, já não se pode dizer que as novas descobertas causaram o reboliço de sempre; as pessoas se acostumaram a viver com segredos abertos. Enquanto alguns mantiveram o esforço de ter uma testa tão livre de erros quanto possível, outros se conformaram com a delinqüência à testa vista e seguiram vida normal, indiferentes ao julgamento alheio. Ainda assim, onde os signos foram usados no processo penal, os índices criminais diminuíram, uma vez que, nesses lugares, ocultar a testa se tornou obstrução à consecução penal e tipificou crime. Ficou mais difícil ocultar esse e outros crimes, coroando a máxima “O crime não compensa”, ao menos não mais nesses lugares.

A cada novidade sobre os signos, o Dr se perguntava: como pôde se passar tanto tempo sem que ninguém tivesse observado aquele novo fato recém descoberto? Como é possível tantas pessoas interessadas, inteligentes e munidas de todos os recursos não notarem cada um desses fatos que se revelavam tão somente diante de si?

A partir do Silas surgiu um novo serviço deveras promissor, o Silas Online. Esse serviço passou a oferecer a possibilidade de se analisar qualquer signo, bastando apenas ter acesso à internet. Butano chegou a lançar um app que faz a leitura em tempo real e em questão de segundos, utilizando a câmera do celular. Durante todo o mês de lançamento esteve disponível um pacote com 5 leituras por apenas R$ 9,92 e junto da estreia surgiu a assinatura com a inovadora Máquina do Tempo, funcionalidade que permite visualizar a evolução de qualquer signo frontal sem sequer haver necessidade de identificar seu portador. O próprio Silas mostrou-se inteligente o bastante para reconhecer quando dois ou mais signos pertenciam à mesma testa.

Essa novidade sim, lembrando a primeira descoberta, foi capaz de gerar inesperada revolta, dessa vez no grupo dos signólogos representados pela ASI — Associação de Signólogos Independentes, e pelo SNS — Sindicato Nacional dos Signólogos. Ambos reclamavam que se interrompesse imediatamente o Silas Online utilizando várias alegações. As mais estridentes foram também as mais familiares:

  • conclusões do serviço não eram confiáveis;
  • o serviço não tinha licença para atuar no segmento;
  • por ser um serviço digital não pagava as taxas a que os profissionais do ramo estavam sujeitos;
  • o serviço não é regulamentado;
  • é uma prestação ilegal.

Lembrou muito o começo dos serviços de motoristas particulares contratados por aplicativo. Falando em aplicativos de motoristas, o serviço líder desse segmento criou uma nova categoria de enorme sucesso em que o cliente, ao iniciar um corrida, tem acesso ao signo frontal completo do motorista junto com análise digital feita, vejam só, pelo próprio Silas Online. As concorrentes trataram de copiar e rapidamente virou padrão desse mercado poder ver o signo do motorista antecipadamente, variando apenas se o serviço é gratuito ou não.

Durante o embate jurídico, o Silas Online fez questão de salientar que não coloca cartazes nos postes, evitando a poluição visual e o acúmulo de papel nos bueiros das cidades, e assim contribuindo para cidades mais limpas e com menos enchentes. Ao final, essa briga só fez barulho, sem interromper a prestação do serviço; foi o triste fim de mais uma profissão cruelmente substituída pela tecnologia.

Assim Silas Online se espalhou pelo mundo igual um vírus respiratório, revolucionando a análise dos signos e provocando os signólogos, que em cada país já sabiam da aproximação do fim da carreira nesse segmento. Para piorar, a equipe de marketing se apressou em oferecer diversos pacotes e assinaturas para conquistar tantos clientes quantos fosse possível.

O país que teve maior adoção foi a Índia, conhecida pelo alto índice de estupro. O serviço foi capaz de reduzir drasticamente o número de novas denúncias, especialmente em carros solicitados por aplicativo. Com um celular na mão as mulheres passaram a ter facilidade em saber não só o passado como as intenções de qualquer pessoa e ganhavam tempo precioso para decidir o que fazer e agir antes que fosse tarde. Era mais um verdadeiro empoderamento feminino criado por homens. Todos comemoraram!

É interessante perceber que apesar da primeira publicação do Dr ter precipitado incômodo, raiva, inconformidade, revolta, contragosto e, em especial, enormes brigas e até algumas ameaças entre líderes vizinhos, passados os anos, pôde-se perceber o oposto. As pessoas se tornaram mais compreensivas umas com as outras, diminuíram-se as rusgas e brigas, independente do seu alcance, desde as brigas domésticas até os conflitos internacionais, inclusive as guerras, tanto as ameaçadas quanto as consumadas. Críticos crêem que seja reflexo direto do pensamento de que, afinal, com signos vistos, quem teria coragem de jogar a primeira pedra?, e, ao mesmo tempo, todos conheciam os sentimentos e o passado de todos e sabiam que os próprios também eram conhecidos. Ninguém imaginou que a sinceridade compulsória seria positiva, aliás, muito pelo contrário, como é fácil de se lembrar. Inclusive, apesar de todos terem se esquecido, à época, muito se falou sobre o sincericídio e seus males.

Houve quem soubesse aproveitar a oportunidade, como o humorista que agregou a leitura dos signos às suas piadas e citou tanto a presença do signo do dengo, uma das formas pelas quais sua esposa demonstrava estar carente, quanto o escarlate signo da raiva em tom vivo de sangue, quando ela queria lhe arrancar o couro. Era parte da piada afirmar que tanta raiva era injusta e exagerada, mas ele apresenta seus stand-ups com o signo coberto.

Fulano enfim pôde voltar até Mamé e contar a novidade, afinal, algo de bom é mantido de forma duradoura, mesmo que não-permanente, a depender da saúde emocional de cada um. Ela ouviu atentamente, calada e pensativa enquanto seu pai olhava apreensivo, adivinhando o que ela ia dizer, dado que se acostumou com sua sensibilidade e inteligência. Em seu signo, o Dr percebeu com muita intensidade a calma e a serenidade enquanto ela pensava.

Mesmo assim, para ele, essa reposta não bastava, portanto, ainda não era tempo de parar a busca e descansar.

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