Signados 4
O olho vê o que encontra eco no coração.

Foi enquanto explicava para sua filha a respeito dos signos mediais e o que significam que ele viu pela primeira vez, contornando seu corpo, uma irradiação luminosa, pálida, em tom azul e com aspecto leitoso; ele estava vendo a aura de Mamé. Nesse primeiro momento não suspeitou de nada e atribuiu a experiência a algum fenômeno espiritual que desconhecia e no qual não acreditava.
A partir desse dia ele passou a ver a aura de todas as pessoas. A de sua filha foi a primeira e por muito tempo a única que ele viu cujo aspecto lhe parecia positivo ou talvez neutro, mesmo que ele ainda não soubesse o que significavam ou se significavam algo. Todas eram tão diversas quanto os signos, variando em cor, intensidade, aspecto e opacidade ou brilho. Algumas tinham outra característica ainda mais curiosa, se assemelhando a chamas ou vibrando como as ondas que rodeiam uma pedra que caiu na água ou fazendo movimento ritmados à volta do seu portador. Tudo era novo e havia muita coisa para observar, documentar e estudar.
Fulano logo percebeu duas coisas importantes. A primeira é que aparentemente só ele via as auras; a segunda é que as câmeras as capturavam em fotos ou vídeos, mas também nesses casos só ele conseguia ver. A visão computacional de Silas também era incapaz de percebê-las.
Ele chegou a procurar alguns médicos. O primeiro foi o oftalmologista a fim de atestar a saúde dos próprios olhos e estes estavam ótimos, sua visão estava perfeita. Depois ele buscou um neurologista, talvez houvesse um câncer afetando o nervo ótico ou algo semelhante e o fazendo ver coisas que não existiam; logo uma ressonância magnética junto de uma tomografia e um eletroencefalograma provaram que o cérebro também estava saudável. Ele tentou ainda a visita a um psiquiatra, vai que ele estava alucinando e ficando maluco. Logo o médico o confortou um pouco, ao menos não havia sinal de distúrbio psiquiátrico.
Foi então que ele se deu por vencido e começou a considerar a ida a um centro espírita. Evitando vieses, decidiu ir também a um templo tibetano. Se não havia sinal de problema orgânico, só restava verificar se era algo espiritual, algo no qual ele ainda não acreditava. A essa altura não lhe restavam opções.
As primeiras visitas se deram a um centro espírita e foi então que viu com maior freqüência um tipo raro de aura. Incapaz de dizer se havia algum significado, muito menos de compreender qualquer carga lógica, seu ceticismo religioso diminuiu um pouco ao ver algumas auras tão mais suaves e radiantes do que aquelas com as quais se acostumara.
Destaque para a aura de um jovem que acompanhava uma senhora bem velhinha; ele cuidava dela com muito carinho e dedicação. Seu signo era muito discreto com poucos delitos, e mesmo estes praticados com pouca freqüência. Seu signo momentâneo parecia manifestar o sentimento de absoluta tranqüilidade e de amor, de um tipo novo para Fulano. Sempre que o Dr se via na mira do seu olhar, sentia que o jovem ouvia seus pensamentos. Nessa primeira visita o Dr não chegou a buscar atendimento nem respostas para suas perguntas, apenas saiu pensativo e tentando entender o que eram essas auras, porquê nunca tinha visto signo como o do jovem antes, ou se este era de fato capaz de perceber o que pensava.
Foi em sua segunda visita, sem resistir à curiosidade de retornar ao centro, conversando com um dos dirigentes do lugar, que Fulano descobriu não ser nem o primeiro nem o único a ver auras, sendo apenas o primeiro a querer documentar o que via. O dirigente, apesar de ter um nome, só era chamado de Médium pelo Dr. O Médium demoradamente lhe explicou o que eram as auras. Ao menos dessa vez ele não precisou estudar e catalogar para enfim entender algo.
O Médium explicou que as auras são a manifestação dos pensamentos, por isso então sua enorme diversidade de cores, aspectos e intensidades. Alguém bem treinado na percepção das auras é capaz de saber exatamente o que alguém está pensando sem necessidade de trocar uma palavra sequer. Isso possibilita que dois interlocutores treinados possam se comunicar sem palavras, apenas com a leitura das auras e dos signos, que aliás, também não são grandes em quem possui tal habilidade.
Foi no templo tibetano que o Dr percebeu que todos pareciam capazes de ler simultaneamente os signos e as auras e traziam olhares semelhantes ao do jovem. Foi também um dos dirigentes do lugar, a partir de então chamado por ele apenas de Monge, que lhe confirmou sobre a leitura destes, mas para eles tudo era uma coisa só e sua leitura também era simultânea. Os de coração mais puro, mais dedicados e moralmente mais elevados tinham acesso à terceira visão, derivada de muito estudo e de delicada operação na fronte a partir da qual todos diante de si se faziam verdadeiros livros abertos. Os portadores da terceira visão têm pequena cicatriz circular centralizada logo acima da altura das sobrancelhas e logo abaixo do próprio signo.
Logo Fulano perdeu a vergonha e se tornou amigo dos dois dirigentes que tiveram prazer em lhe ensinar tudo sobre as auras e sua leitura. Ávido por conhecimento e metódico nas suas anotações, o Dr se mostrou excelente aluno, sempre com perguntas pertinentes e perspicazes, rapidamente compilando detalhada documentação.
Quando já era capaz de entender quase plenamente as auras, o Dr se lembrou da pergunta de Mamé: por que só as ações reprováveis marcam e permanecem?
A resposta deixou Fulano envergonhado, com a aura trêmula em tom rosa apagado. Primeiro ele perguntou ao Monge, que respondeu com um sorriso mas sem palavras, apenas com a aura:
- Ora, porque até hoje todo o seu estudo dos signos foi feito fazendo apenas perguntas negativas.
O Médium, também sorridente e também apenas com a aura deu exatamente a mesma resposta. Será que eles combinaram? Os dois pareciam estar esperando o dia em que essa pergunta finalmente seria feita e ficaram muito alegres em respondê-la.
Então ele se lembrou de como tudo começou, primeiro analisando detentos e relacionando crimes; depois expandindo para delitos não-criminais; mas nunca incluiu nas análises atitude neutras, quem dirá positivas. Até na revolução trazida por Silas com a ajuda do psicólogo ele estudou apenas as atitudes de mesma natureza, de mesmo viés: criminosas, delituosas, reprováveis.
Se “a boca fala do que está cheio o coração”, Fulano percebeu que o olho também vê o que no coração encontra eco.
Finalmente ele tinha uma explicação para Mamé e ele viu genuína alegria em seu signo, enquanto no seu próprio demoradamente viu a vergonha.
Revisado por Carolina Brandão.