Signados 1
Os delitos pequenos e grandes estampados na testa.

Última edição: 28 de Setembro, 2017
Um dia Dr Fulano recebe em seu consultório um cidadão com uma queixa inédita. Este aparece com uma marca jamais vista pelo médico, que começa o exame. A marca tem tais e quais características e deixa Fulano muito intrigado. Dado o ineditismo, tudo que ele pôde fazer foi pedir ao paciente que retornasse numa outra ocasião enquanto o médico faria uma pesquisa a fim de encontrar pistas a respeito da patologia.
Após semanas a fio o médico não encontra nada cujos sintomas sejam exatamente como os vistos na consulta, nesse caso ele decide chamar o paciente de volta para pedir exames de laboratório com coleta de material biológico. Quem sabe assim ele se aproximasse de um diagnóstico.
Mal ele decidiu fazer esses exames aparece um segundo paciente apresentando rigorosamente a mesma marca. Nesse caso ele nem hesita e parte direto para exames de laboratório. Mal sabia ele que aquele seria apenas o primeiro caso no dia e que antes de chegar em sua casa ele veria outros tantos iguais.
Após almoçar ele vê na moça que está no caixa do restaurante a mesma marca e decide lhe fazer algumas perguntas, quando descobre que ela não as entendia, como quem desconhece uma marca tão evidente. Quando chega em casa e liga a TV logo ouve a música nervosa do Plantão da Globo com a notícia de que inúmeras pessoas dentro dos presídios amanheceram com marcas curiosas na testa, idênticas àquelas que ele passou o dia tentando diagnosticar. Ele imediatamente entra em contato com a Secretaria Estadual de Segurança — estava decidido a examinar aqueles detentos.
Após exame de praticamente todos os detentos ele descobre que grande número dos, a partir de então batizados de signados, haviam sido condenados, entre outros motivos, por furto ou roubo. Ele então decide, em ambiente privado e se valendo da prerrogativa de segredo médico, questionar aqueles que não tinham registro de furtos ou roubos. Feitas as entrevistas ele descobre que todos, sem exceção, mesmo que não seja sabido pela justiça, tinham cometido furto ou roubo em algum momento da vida.
Estarrecido, ele lembra de todos os pacientes que se queixaram da mesma marca e das tantas pessoas com quem ele havia cruzado na rua também marcados e se dá conta de que todos são ladrões. Imediatamente ele se levanta num estalo e corre para o banheiro mais próximo e fita o espelho com pressa — lá estava a marca novamente, mas dessa vez em sua própria testa.
Apesar do transe com que se olhava no espelho, Fulano pôde perceber que havia ao seu lado um sujeito também olhando a própria imagem. Em sua testa havia uma marca muito diferente, mas que parecia obra do mesmo artista. Sem se dar conta da forma rude, perguntou sem rodeio — Diga aí, o que você fez para ostentar essa marca? O homem, sem entender já ia saindo quando ele tentou de novo, mas de forma mais discreta — Perdoe-me a rudeza, sou dermatologista e estou estudando essas marcas. O sujeito então decidiu ouvir aquele louco que lhe abordara de forma tão estranha. Após longa entrevista, Fulano não consegue a confissão do delito cometido pelo sujeito. O Doutor tira uma foto da testa e sai andando devagar tentando entender qual seria o delito referente àquela nova marca.
Quando se dá conta Fulano está num local conhecido pela ocorrência de crimes até que percebe que agora inúmeras pessoas estão com a primeira marca, mas havia sim algumas com a segunda. De átimo ele decide voltar para o presídio e novamente faz avaliação dos crimes cometidos pelo detentos. Logo ele percebe que todos os detentos com a segunda marca tinham cometido estupro, além disso, ele percebe também que nem todos eles se dão conta do que se trata, então ele repete algumas entrevistas, mas dessa vez em posse de espelhos. Rapidamente ele chega à conclusão de que alguns vêem a própria marca enquanto outros não. Há também uma nova constatação: alguns detentos têm uma combinação curiosa das marcas. Dessa vez não foi difícil supor e concluir que se tratavam daqueles que tinham cometido os dois crimes.
Desde a descoberta da segunda marca, Dr Fulano decidiu fazer visitas semanais ao presídio, sempre esperando o surgimento da próxima, que não tardou em aparecer. A nova marca aparecera nos homicidas e surgira também marcas que eram combinação com uma ou outra ou mesmo as duas anteriores. A essa altura já eram 7 marcas diferentes, dada a combinação entre elas e seus respectivos crimes.
Depois de alguns meses acompanhando o surgimento dessas marcas e seus significados delituosos ou criminais, Dr Fulano percebe que não mais se tratam só de crimes, mas surgem também delitos não criminais, como mentira, adultério ou mesmo inveja e preguiça. A essa altura praticamente todas as pessoas têm uma marca que é quase exclusiva, dado que, como perceberia, havia gradação da marca de acordo com a freqüência com que se cometia o delito ou há quanto tempo havia ocorrido ou mesmo sua intensidade, quando aplicável. Fulano finalmente decide divulgar seu trabalho junto com tudo aquilo que havia documentado sobre as marcas, seus significados e como fazer sua leitura.
Com a divulgação do trabalho de Dr Fulano, o deputado Depù começa a defender a documentação policial das marcas nos processos penais em andamento com respectiva adição dos seus estudos sobre seu significado ao inquérito e a devida consideração da marca na qualidade de prova material de crime, quando for o caso. Logo surgiu, em seguida, todo um reboliço parlamentar e jurídico, pois havia quem defendesse o uso policial das marcas bem como alguns ativistas tratavam a marca como uma mera tatuagem indesejada e compulsória na testa de cada cidadão e que não poderia constituir prova em inquérito. Imediatamente são divulgados diversos estudos, todos eles contraditórios, sobre a marca de Depù com a lista dos crimes e delitos cometidos, bem como suas falhas de caráter. Como se não bastasse, em resposta a Depù, Deputa, uma deputada conhecida por suas propostas estapafúrdias e seu signo de aspecto questionável, propõe que todos os detentos tenham suas condenações revisadas de acordo com suas marcas e que todos tenham as penas abrandadas até que a análise seja concluída, sob risco de injustiça para com os presos inocentes ou com penas aplicadas com rigor exagerado ou fora da lei.
A essa altura, aprofundados e difundidos os estudos sobre os signos frontais, como batizou Dr Fulano, tornou-se rápido verificar, e conseqüentemente julgar, a índole de qualquer pessoa, bastaria conhecer a leitura dos signos. Eventualmente apareceram artigos de opinadores de plantão, uns defendendo que o signo caracterizava um livro aberto, apareceu quem defendesse que o signo era apenas uma primeira impressão sobre o indivíduo e que, portanto, ainda é preciso de fato conviver para conhecer a índole de cada um. O maior destaque foi o surgimento de um novo ofício, o signólogo — leitor de signos — com cartazes colados nos postes anunciando que lê o signo da pessoa amada, antecipa o conhecimento das mazelas desta e evita frustrações futuras, dado que não haveria surpresas.
Sem demora começou uma forte adesão ao uso de itens de chapelaria bem como de cabelos com franjas compridas. A moda tornou-se encontrar formas de esconder o próprio signo e canais explodiam nas mídias sociais com guias e discussões a respeito, abrindo-se assim margem para que crescesse o tabu de jamais olhar diretamente para o signo alheio, especialmente sem autorização.
Nessa onda, surge finalmente o MTP — Movimento da Testa Pudica — pelo direito de esconder as testas e conseqüentemente a proibição de ver as testas alheias. O movimento brigava pela classificação de uma nova forma de atentado ao pudor, o “atentado ao pudor de signo”, ou seja, é “passível de punição penal aquele que em ambientes públicos exibe o próprio signo”. Sair de testa nua virou tabu e agora é tão despudorado quanto sair sem roupa! Inclusive, para surpresa de muitos, multidões foram às ruas manifestar. O símbolo da manifestação era a bandana, apesar do largo uso de bonés e chapéus de todas as cores, viu-se, inclusive, burcas. Há que se destacar também a manifestação mais interessante, batizada de Marcha das Damas, em que mulheres ostentavam suas bandanas com palavras de ordem ao mesmo tempo em que desfilavam de seios nus, a fim de chamar mais atenção para a causa e quem sabe desviar a atenção das testas.
Nessa marcha houve exibição dos mais curiosos cartazes, com destaque para a palavra de ordem favorita da multidão, com direito a trava língua — Mais tetas, menos testas! Também foi nessa marcha que começaram dois movimentos dignos de nota. Um movimento pregava que se queimassem todas as cartilhas e guias ensinando a ler os signos frontais, dessa forma cada signo seria sim como uma tatuagem exclusiva de cada indivíduo. O outro movimento pedia que se queimasse também o Dr Fulano por ter trazido à tona todo esse problema ao estudar os signos. Com essas medidas todos poderiam cortar seus cabelos livremente e deixar os itens de chapelaria e bandanas em casa sem medo de que suas confissões fossem sabidas por todos, tudo isso com a certeza de que o responsável pelo caos, na sua gana de ser dedicado e estudioso, foi sacrificado por ter exposto a vida privada e os delitos íntimos da nação.
Enquanto isso, Fulano fugiu do país levando seus estudos, mudou de nome e viveu sua vida feliz, sem se preocupar com a mudança do seu signo que indicava que havia entre seus delitos o de covarde.
Confira aqui a segunda parte.