Signados
Os delitos pequenos e grandes estampados na testa.

Essa publicação compila em uma só a parte 1, parte 2, parte 3 e parte 4 do conto.
Um dia Dr Fulano recebe em seu consultório um cidadão com uma queixa inédita. Este aparece com uma marca jamais vista pelo médico, que começa o exame. A marca tem tais e quais características e deixa Fulano muito intrigado. Dado o ineditismo, tudo que ele pôde fazer foi pedir ao paciente que retornasse numa outra ocasião enquanto o médico faria uma pesquisa a fim de encontrar pistas a respeito da patologia.
Após semanas a fio o médico não encontra nada cujos sintomas sejam exatamente como os vistos na consulta, nesse caso ele decide chamar o paciente de volta para pedir exames de laboratório com coleta de material biológico. Quem sabe assim ele se aproximasse de um diagnóstico.
Mal ele decidiu fazer esses exames aparece um segundo paciente apresentando rigorosamente a mesma marca. Nesse caso ele nem hesita e parte direto para exames de laboratório. Mal sabia ele que aquele seria apenas o primeiro caso no dia e que antes de chegar em sua casa ele veria outros tantos iguais.
Após almoçar ele vê na moça que está no caixa do restaurante a mesma marca e decide lhe fazer algumas perguntas, quando descobre que ela não as entendia, como quem desconhece uma marca tão evidente. Quando chega em casa e liga a TV logo ouve a música nervosa do Plantão da Globo com a notícia de que inúmeras pessoas dentro dos presídios amanheceram com marcas curiosas na testa, idênticas àquelas que ele passou o dia tentando diagnosticar. Ele imediatamente entra em contato com a Secretaria Estadual de Segurança — estava decidido a examinar aqueles detentos.
Após exame de praticamente todos os detentos ele descobre que grande número dos, a partir de então batizados de signados, haviam sido condenados, entre outros motivos, por furto ou roubo. Ele então decide, em ambiente privado e se valendo da prerrogativa de segredo médico, questionar aqueles que não tinham registro de furtos ou roubos. Feitas as entrevistas ele descobre que todos, sem exceção, mesmo que não seja sabido pela justiça, tinham cometido furto ou roubo em algum momento da vida.
Estarrecido, ele lembra de todos os pacientes que se queixaram da mesma marca e das tantas pessoas com quem ele havia cruzado na rua também marcados e se dá conta de que todos são ladrões. Imediatamente ele se levanta num estalo e corre para o banheiro mais próximo e fita o espelho com pressa — lá estava a marca novamente, mas dessa vez em sua própria testa.
Apesar do transe com que se olhava no espelho, Fulano pôde perceber que havia ao seu lado um sujeito também olhando a própria imagem. Em sua testa havia uma marca muito diferente, mas que parecia obra do mesmo artista. Sem se dar conta da forma rude, perguntou sem rodeio — Diga aí, o que você fez para ostentar essa marca? O homem, sem entender já ia saindo quando ele tentou de novo, mas de forma mais discreta — Perdoe-me a rudeza, sou dermatologista e estou estudando essas marcas. O sujeito então decidiu ouvir aquele louco que lhe abordara de forma tão estranha. Após longa entrevista, Fulano não consegue a confissão do delito cometido pelo sujeito. O Doutor tira uma foto da testa e sai andando devagar tentando entender qual seria o delito referente àquela nova marca.
Quando se dá conta Fulano está num local conhecido pela ocorrência de crimes até que percebe que agora inúmeras pessoas estão com a primeira marca, mas havia sim algumas com a segunda. De átimo ele decide voltar para o presídio e novamente faz avaliação dos crimes cometidos pelo detentos. Logo ele percebe que todos os detentos com a segunda marca tinham cometido estupro, além disso, ele percebe também que nem todos eles se dão conta do que se trata, então ele repete algumas entrevistas, mas dessa vez em posse de espelhos. Rapidamente ele chega à conclusão de que alguns vêem a própria marca enquanto outros não. Há também uma nova constatação: alguns detentos têm uma combinação curiosa das marcas. Dessa vez não foi difícil supor e concluir que se tratavam daqueles que tinham cometido os dois crimes.
Desde a descoberta da segunda marca, Dr Fulano decidiu fazer visitas semanais ao presídio, sempre esperando o surgimento da próxima, que não tardou em aparecer. A nova marca aparecera nos homicidas e surgiram também marcas que eram combinação com uma ou outra ou mesmo as duas anteriores. A essa altura já eram 7 marcas diferentes, dada a combinação entre elas e seus respectivos crimes.
Depois de alguns meses acompanhando o surgimento dessas marcas e seus significados delituosos ou criminais, Dr Fulano percebe que não mais se tratam só de crimes, mas surgem também delitos não criminais, como mentira, adultério ou mesmo inveja e preguiça. A essa altura praticamente todas as pessoas têm uma marca que é quase exclusiva, dado que, como perceberia, havia gradação da marca de acordo com a freqüência com que se cometia o delito ou há quanto tempo havia ocorrido ou mesmo sua intensidade, quando aplicável. Fulano finalmente decide divulgar seu trabalho junto com tudo aquilo que havia documentado sobre as marcas, seus significados e como fazer sua leitura.
Com a divulgação do trabalho de Dr Fulano, o deputado Depù começa a defender a documentação policial das marcas nos processos penais em andamento com respectiva adição dos seus estudos sobre seu significado ao inquérito e a devida consideração da marca na qualidade de prova material de crime, quando for o caso. Logo surgiu, em seguida, todo um reboliço parlamentar e jurídico, pois havia quem defendesse o uso policial das marcas bem como alguns ativistas tratavam a marca como uma mera tatuagem indesejada e compulsória na testa de cada cidadão e que não poderia constituir prova em inquérito. Imediatamente são divulgados diversos estudos, todos eles contraditórios, sobre a marca de Depù com a lista dos crimes e delitos cometidos, bem como suas falhas de caráter. Como se não bastasse, em resposta a Depù, Deputa, uma deputada conhecida por suas propostas estapafúrdias e seu signo de aspecto questionável, propõe que todos os detentos tenham suas condenações revisadas de acordo com suas marcas e que todos tenham as penas abrandadas até que a análise seja concluída, sob risco de injustiça para com os presos inocentes ou com penas aplicadas com rigor exagerado ou fora da lei.
A essa altura, aprofundados e difundidos os estudos sobre os signos frontais, como batizou Dr Fulano, tornou-se rápido verificar, e conseqüentemente julgar, a índole de qualquer pessoa, bastaria conhecer a leitura dos signos. Eventualmente apareceram artigos de opinadores de plantão, uns defendendo que o signo caracterizava um livro aberto, apareceu quem defendesse que o signo era apenas uma primeira impressão sobre o indivíduo e que, portanto, ainda é preciso de fato conviver para conhecer a índole de cada um. O maior destaque foi o surgimento de um novo ofício, o signólogo — leitor de signos — com cartazes colados nos postes anunciando que lê o signo da pessoa amada, antecipa o conhecimento das mazelas desta e evita frustrações futuras, dado que não haveria surpresas.
Sem demora começou uma forte adesão ao uso de itens de chapelaria bem como de cabelos com franjas compridas. A moda tornou-se encontrar formas de esconder o próprio signo e canais explodiam nas mídias sociais com guias e discussões a respeito, abrindo-se assim margem para que crescesse o tabu de jamais olhar diretamente para o signo alheio, especialmente sem autorização.
Nessa onda, surge finalmente o MTP — Movimento da Testa Pudica — pelo direito de esconder as testas e conseqüentemente a proibição de ver as testas alheias. O movimento brigava pela classificação de uma nova forma de atentado ao pudor, o “atentado ao pudor de signo”, ou seja, é “passível de punição penal aquele que em ambientes públicos exibe o próprio signo”. Sair de testa nua virou tabu e agora é tão despudorado quanto sair sem roupa! Inclusive, para surpresa de muitos, multidões foram às ruas manifestar. O símbolo da manifestação era a bandana, apesar do largo uso de bonés e chapéus de todas as cores, viu-se, inclusive, burcas. Há que se destacar também a manifestação mais interessante, batizada de Marcha das Damas, em que mulheres ostentavam suas bandanas com palavras de ordem ao mesmo tempo em que desfilavam de seios nus, a fim de chamar mais atenção para a causa e quem sabe desviar a atenção das testas.
Nessa marcha houve exibição dos mais curiosos cartazes, com destaque para a palavra de ordem favorita da multidão, com direito a trava língua — Mais tetas, menos testas! Também foi nessa marcha que começaram dois movimentos dignos de nota. Um movimento pregava que se queimassem todas as cartilhas e guias ensinando a ler os signos frontais, dessa forma cada signo seria sim como uma tatuagem exclusiva de cada indivíduo. O outro movimento pedia que se queimasse também o Dr Fulano por ter trazido à tona todo esse problema ao estudar os signos. Com essas medidas todos poderiam cortar seus cabelos livremente e deixar os itens de chapelaria e bandanas em casa sem medo de que suas confissões fossem sabidas por todos, tudo isso com a certeza de que o responsável pelo caos, na sua gana de ser dedicado e estudioso, foi sacrificado por ter exposto a vida privada e os delitos íntimos da nação.
Enquanto isso, Fulano fugiu do país levando seus estudos, mudou de nome e viveu sua vida feliz, sem se preocupar com a mudança do seu signo que indicava que havia entre seus delitos o de covarde.
Novos signos, velhas polêmicas
Já se passaram três anos desde que Fulano fugiu da perseguição em razão do seu mais consagrado trabalho: a classificação e interpretação daquilo que chamou de Signos. Um tipo de marca que surgiu nas testas das pessoas e que Fulano percebeu se tratar de uma confissão involuntária dos delitos passados e presentes do portador.
Os signos chegaram para ficar e foram instrumento de todo tipo de arbitrariedade, desde a mais absoluta intolerância aos delitos listados entre os crimes anteriormente previstos em lei até a transformação em tabu a exibição da própria testa. Em um extremo, os signos constituíram confissão questionada apenas na interpretação de um ou outro perito e no outro extremo fez prosperar uma nova indústria de indumentária para cobrir o signo — despir a testa se tornou ato de extrema intimidade, reservada aos mais próximos. Mesmo sem se aprofundar na compreensão dos significados, todos tinham noção das formas derivadas de determinados delitos. Alguns países passaram a enfrentar enorme aumento nas taxas de suicídio.
O Dr se casou e teve uma filha. Foi com elas que vivenciou o primeiro momento daquilo que revolucionaria o que a ciência aprendeu sobre os signos.
Fulano e Lita estavam brincando com Mamé enquanto a menina corria na grama feliz da vida, ele olhou para sua esposa e viu de forma muito evidente a marca na sua testa mudar bruscamente, tanto de formato quanto de cor, enquanto ela sorria largamente. Com menor rapidez, esta reassumiu a forma com a qual ele já estava acostumado enquanto assistia a tudo mudo, boquiaberto, com olhos arregalados, rosto pálido e cara de bobo.
Naquele instante ele se deu conta de várias coisas: ele ia novamente estudar essas marcas nas testas, ia novamente apresentar isso para o mundo, causar outro reboliço global, ser chamado de tudo que é nome, e fugir de novo.
De volta do choque, pôs-se imediatamente a fazer várias perguntas meio sem sentido para Lita, que obviamente não entendeu nada e logo se irritou. Novamente, sua marca mudou de cor e forma, mas dessa vez durou um pouco mais enquanto o olhava irritada, o que deu a ele a oportunidade de fotografar o signo, para coroar a irritação da mulher que julgou se tratar de deboche.
Ao longo daquele dia ele fotografou várias marcas momentâneas de sua esposa em momentos de alegria, de irritação e de tantos outros sentimentos que ele foi incapaz de associar de imediato, mas que guardou para análise futura. Antes de se debruçar sobre as imagens, revendo a sucessão dos fatos, lhe ocorreu a primeira hipótese: as marcas são momentâneas por se tratarem de circunstâncias elas mesmas efêmeras, o que difere de um delito marcado na memória e tantas vezes acentuado pela culpa.
Foi com Mamé que o Dr teve sua maior surpresa quando ela correu até ele após um sonoro raio. Naquele instante ele pôde perceber que apesar dela até então não ter um signo formado, manifestou um signo momentâneo e de cor profunda que ele nunca tinha visto. Dessa vez ele teve a sensibilidade de, ao invés de tirar uma foto, perguntar o que ela sentia, ao que ela respondeu — estou com medo, papai.
Naquele instante ele desvendou a charada: a mudança nos signos ocorre em razão dos sentimentos e, dada sua natureza momentânea, também são momentâneas as mudanças de cor e forma. Sabido isso, o esforço de classificação foi bastante abreviado, uma vez que tanto ele quanto a esposa se esforçaram em expressar verbalmente os próprios sentimentos.
Tão logo o novo manual de análise e compreensão das mudanças dos signos foi concluído, o Dr Fulano apresentou o trabalho para o mundo e novamente começou o debate.
Os primeiros segmentos afetados foram, novamente, o jurídico e o político. Os advogados não gostaram nada da novidade pois já não era mais possível mentir em juízo sem que fosse logo descoberto. E no parlamento as brigas ficaram tanto mais quentes quanto mais engraçadas, uma vez que os mais espertos se dedicavam a estudar o comportamento dos signos e os utilizavam com maestria aproveitando as testas nuas de seus pares. Inclusive, dessa vez a Deputa nem viu brecha para explorar a novidade, já que agora a verdade, ou a falta dela, estava a olhos vistos.
A rica indústria de produtos para cobertura de testa rapidamente sumiu, agora quem cobre o próprio signo passou a ser visto como mentiroso ou algo pior.
Os traficantes, incapazes de esboçar um sentimento positivo ou neutro, sumiram. Logo todos eles se mataram uns aos outros pois, cada vez que se percebia a mentira ou a traição, não faltava bala para vingar o fato, causando muito medo de mentir, de trair e mesmo de delinqüir. O que causou o maior estrago foi a evidência do medo: nada, em ambientes tão hostis, enfraquece tanto uma pessoa quanto fazer saber que se está com medo.
Mamé, num lampejo de genialidade infantil, perguntou para o pai: porque somente as coisas feias ficam evidentes nas testas das pessoas?
Depois de muito investigar, ele chegou à conclusão de que os fatos positivos e edificantes têm mais intenso efeito no signo momentâneo, em especial de alegria e satisfação. Mesmo assim, a pergunta de Mamé permanece sem resposta: por que atitudes positivas não deixam signos expressivos que se manifestem de forma duradoura?
Ainda não é tempo de parar a busca e descansar
Mais uma vez Dr Fulano e seus estudos mereceram destaque por este que vos fala. Diferente porém, foi o desfecho dos fatos, já que ele previra varias repetições, culminando mais uma vez na covardia, na fuga e no ostracismo. Quando da sua descoberta daquilo que batizou de signos momentâneos, no geral, as pessoas já estavam acostumadas à idéia de levar na testa um signo que continha histórico de todos os seus grandes e pequenos delitos, por mais desconfortável que isso fosse. Acrescentar o fato de que se poderia, a partir de então, ler as emoções, tão somente aumentou o desconforto, mas não a ponto de justificar nova fuga.
A terceira descoberta de Fulano no estudo dos signos, no entanto, se iniciou no fim do relato anterior, quando Mamé, sua filha, com outras palavras, perguntou de forma muito perspicaz: por que atitudes positivas não deixam signos expressivos que se manifestem de forma duradoura?
Descontente em apenas responder para a filha que os signos momentâneos manifestavam emoções positivas e negativas, pôs-se a procurar a resposta.
Sendo ele próprio um cidadão mais vivido, podendo-se dizer até que não é nenhum jovem, ou mesmo que já é de meia idade, Dr não tinha gosto pela tecnologia e muito menos por seus meandros técnicos, incompreensíveis para si. Assim, as infinitas possibilidades que esta ferramenta poderia lhe oferecer também passaram desapercebidas. Foi seu irmão, engenheiro de software e aficionado por tecnologia, quem, vendo um entre tantos dos catálogos de signos com relatório de análise, perguntou: por que vc não submete esse material a análise de imagem com inteligência artificial?
Então, naquela tarde quente e seca, Fulano teve, ao mesmo tempo, uma surpresa seguida de enorme entusiasmo com os resultados que sequer conseguia imaginar, e um tanto de vergonha, tanto por nunca ter lhe ocorrido a possibilidade de utilizar tecnologia, quanto por não ter a mínima idéia de como fazê-lo ou mesmo de por onde começar. O próprio irmão o ajudou nessa parte, começando por digitalizar os signos catalogados com seus respectivos relatórios e esboçando o primeiro modelo de análise. são Junto à digitalização do que já tinha, foi iniciada uma grande campanha para preenchimento do banco de dados de signos junto com um minucioso formulário contendo os principais delitos e sentimentos. Posteriormente havia a possibilidade tanto de validar o que foi informado no formulário, confrontando-o com os resultados contínuos da análise, quanto a perspectiva de expandir o que a leitura do signo apontava com respostas cujas perguntas não estavam no formulário e poderiam ser confirmadas.
Após tamanho esforço, Fulano e seu irmão, Butano, concluíram a versão 1 do SiLAS, Sistema de Leitura Avançada de Signos, conseguindo observar as primeiras conclusões. Silas, como ficou conhecido, foi capaz de identificar que cada signo é dividido em três setores, dispostos da seguinte maneira:
- um setor para os delitos permanentes, os primeiros observados por Fulano;
- um setor para os delitos momentâneos, os que indicam a emoção predominante em determinado momento;
- um novo setor até então desconhecido e sem papel distinguível;
Esse novo setor era intrigante e Silas apontou que esteve presente em grande parte das imagens analisadas. Ou seja, esses signos, agora batizados de mediais, posto que ficam no meio entre os outros dois, estavam presentes sem serem notados, por isso mesmo não se conhecia seus significados.
Para resolver essa questão os irmãos recorreram aos voluntários da campanha. Entre os participantes do estudo foram selecionados 10% do total para realização de entrevista gravada em vídeo, tomando o cuidado de deixar de fora os já identificados como omissos, mentirosos ou manipuladores. A primeira e a segunda rodada de entrevista não revelaram nada. Pôde-se notar a presença de um padrão favorável somente na terceira, quando um dos entrevistadores, que era psicólogo e espiritualista, fugiu do protocolo utilizando uma coleção própria de perguntas em mais de 50 entrevistas.
Apesar de 50 relatos ser um número muito pequeno para se identificar padrões descritíveis sob análise do Silas, foi suficiente para a equipe aceitar as sugestões do psicólogo na expansão do formulário original, abordando muitos outros aspectos ignorados inicialmente. Com esse novo formulário foi possível seguir adiante com o estudo, aplicado, agora sim, a todos os participantes.
Assim foram descobertos os signos intermediários, informando o estado emocional não-momentâneo das pessoas.
Explicando com exemplos:
- imagine o signo medial de uma gestante que esteja muito feliz com a chegada de seu rebento, esta prolongada felicidade será apresentada;
- imagine a alegria de um cidadão recém contratado para um novo emprego após longo período sem oportunidade de trabalho; a alegria e o entusiasmo aparecerão no signo medial;
- imagine ainda distúrbios graves, tais como síndrome do pânico, ansiedade, depressão e entenda que esses também se manifestam no signo medial.
Há outros signos mediais igualmente interessantes e freqüentes, como a manifestação de mágoas e paixões.
Em resumo, os signos mediais expressam sentimentos que apesar de mais duradouros que alguns instantes, duram o bastante para deixar sinais, mas não o bastante para serem permanentes. São emoções que tendem a mudar ou sumir ao longo do tempo, à medida que esses sentimentos evoluam ou regridam para outros ou cessem de uma vez.
Outra descoberta derivada das análises de Silas foi o curioso ineditismo do arrependimento, que apesar de ser tão comum quanto a maioria dos demais sentimentos, não tinha sido identificado anteriormente. Sua manifestação é bastante peculiar: iniciando a aparição no signo momentâneo, normalmente de forma mais longa que os demais e se destacando acima de qualquer outro com o qual concorra; em seguida, à medida que perde intensidade no signo momentâneo, aparece no signo medial, demonstrando se tratar de emoção duradoura, e é nessa fase que se percebe o fenômeno mais impressionante — o delito de que se arrependeu muda de cor, de intensidade, de aspecto, perdendo destaque entre os demais, se assemelhando a uma cicatriz de queimadura e tendo sua expressão drasticamente diminuída; com o tempo se torna praticamente um novo signo.
O arrependimento, obviamente, não impede que o sujeito reincida no mesmo erro. Nesses casos, por cima da cicatriz, que continua aparente, aparece nova marca. Essa é muito mais interessante, dado que, junto à evidência do delito reincidente, há também a expressão da teimosia. Só não se manifesta a estupidez em quaisquer dos signos por não se tratar de delito ou sentimento momentâneo ou duradouro… Afinal se assemelha a uma característica orgânica que se evidencia sem necessidade dos estudos do renomado Dr Fulano ou do seu engenhoso Silas.
Observando os resultados referentes ao arrependimento, os irmãos perceberam que antes usar a inteligência do Silas, sem motivo aparente, não havia a prática de reanálise antecedida de atualização dos signos dos voluntários e dos respectivos formulários. Após adquirido o hábito de fazê-lo, foi possível perceber a evolução do signo dos participantes de acordo com suas ações e emoções.
Concluído e publicado o estudo, os dados foram anonimizados, tornados públicos e abertos para análise de qualquer interessado. Na publicação consta a participação de Butano e menção ao psicólogo rebelde e suas perguntas inesperadas.
Exceto por um detalhe que será relatado logo abaixo, já não se pode dizer que as novas descobertas causaram o reboliço de sempre; as pessoas se acostumaram a viver com segredos abertos. Enquanto alguns mantiveram o esforço de ter uma testa tão livre de erros quanto possível, outros se conformaram com a delinqüência à testa vista e seguiram vida normal, indiferentes ao julgamento alheio. Ainda assim, onde os signos foram usados no processo penal, os índices criminais diminuíram, uma vez que, nesses lugares, ocultar a testa se tornou obstrução à consecução penal e tipificou crime. Ficou mais difícil ocultar esse e outros crimes, coroando a máxima “O crime não compensa”, ao menos não mais nesses lugares.
A cada novidade sobre os signos, o Dr se perguntava: como pôde se passar tanto tempo sem que ninguém tivesse observado aquele novo fato recém descoberto? Como é possível tantas pessoas interessadas, inteligentes e munidas de todos os recursos não notarem cada um desses fatos que se revelavam tão somente diante de si?
A partir do Silas surgiu um novo serviço deveras promissor, o Silas Online. Esse serviço passou a oferecer a possibilidade de se analisar qualquer signo, bastando apenas ter acesso à internet. Butano chegou a lançar um app que faz a leitura em tempo real e em questão de segundos, utilizando a câmera do celular. Durante todo o mês de lançamento esteve disponível um pacote com 5 leituras por apenas R$ 9,92 e junto da estreia surgiu a assinatura com a inovadora Máquina do Tempo, funcionalidade que permite visualizar a evolução de qualquer signo frontal sem sequer haver necessidade de identificar seu portador. O próprio Silas mostrou-se inteligente o bastante para reconhecer quando dois ou mais signos pertenciam à mesma testa.
Essa novidade sim, lembrando a primeira descoberta, foi capaz de gerar inesperada revolta, dessa vez no grupo dos signólogos representados pela ASI — Associação de Signólogos Independentes, e pelo SNS — Sindicato Nacional dos Signólogos. Ambos reclamavam que se interrompesse imediatamente o Silas Online utilizando várias alegações. As mais estridentes foram também as mais familiares:
- conclusões do serviço não eram confiáveis;
- o serviço não tinha licença para atuar no segmento;
- por ser um serviço digital não pagava as taxas a que os profissionais do ramo estavam sujeitos;
- o serviço não é regulamentado;
- é uma prestação ilegal.
Lembrou muito o começo dos serviços de motoristas particulares contratados por aplicativo. Falando em aplicativos de motoristas, o serviço líder desse segmento criou uma nova categoria de enorme sucesso em que o cliente, ao iniciar um corrida, tem acesso ao signo frontal completo do motorista junto com análise digital feita, vejam só, pelo próprio Silas Online. As concorrentes trataram de copiar e rapidamente virou padrão desse mercado poder ver o signo do motorista antecipadamente, variando apenas se o serviço é gratuito ou não.
Durante o embate jurídico, o Silas Online fez questão de salientar que não coloca cartazes nos postes, evitando a poluição visual e o acúmulo de papel nos bueiros das cidades, e assim contribuindo para cidades mais limpas e com menos enchentes. Ao final, essa briga só fez barulho, sem interromper a prestação do serviço; foi o triste fim de mais uma profissão cruelmente substituída pela tecnologia.
Assim Silas Online se espalhou pelo mundo igual um vírus respiratório, revolucionando a análise dos signos e provocando os signólogos, que em cada país já sabiam da aproximação do fim da carreira nesse segmento. Para piorar, a equipe de marketing se apressou em oferecer diversos pacotes e assinaturas para conquistar tantos clientes quantos fosse possível.
O país que teve maior adoção foi a Índia, conhecida pelo alto índice de estupro. O serviço foi capaz de reduzir drasticamente o número de novas denúncias, especialmente em carros solicitados por aplicativo. Com um celular na mão as mulheres passaram a ter facilidade em saber não só o passado como as intenções de qualquer pessoa e ganhavam tempo precioso para decidir o que fazer e agir antes que fosse tarde. Era mais um verdadeiro empoderamento feminino criado por homens. Todos comemoraram!
É interessante perceber que apesar da primeira publicação do Dr ter precipitado incômodo, raiva, inconformidade, revolta, contragosto e, em especial, enormes brigas e até algumas ameaças entre líderes vizinhos, passados os anos, pôde-se perceber o oposto. As pessoas se tornaram mais compreensivas umas com as outras, diminuíram-se as rusgas e brigas, independente do seu alcance, desde as brigas domésticas até os conflitos internacionais, inclusive as guerras, tanto as ameaçadas quanto as consumadas. Críticos crêem que seja reflexo direto do pensamento de que, afinal, com signos vistos, quem teria coragem de jogar a primeira pedra?, e, ao mesmo tempo, todos conheciam os sentimentos e o passado de todos e sabiam que os próprios também eram conhecidos. Ninguém imaginou que a sinceridade compulsória seria positiva, aliás, muito pelo contrário, como é fácil de se lembrar. Inclusive, apesar de todos terem se esquecido, à época, muito se falou sobre o sincericídio e seus males.
Houve quem soubesse aproveitar a oportunidade, como o humorista que agregou a leitura dos signos às suas piadas e citou tanto a presença do signo do dengo, uma das formas pelas quais sua esposa demonstrava estar carente, quanto o escarlate signo da raiva em tom vivo de sangue, quando ela queria lhe arrancar o couro. Era parte da piada afirmar que tanta raiva era injusta e exagerada, mas ele apresenta seus stand-ups com o signo coberto.
Fulano enfim pôde voltar até Mamé e contar a novidade, afinal, algo de bom é mantido de forma duradoura, mesmo que não-permanente, a depender da saúde emocional de cada um. Ela ouviu atentamente, calada e pensativa enquanto seu pai olhava apreensivo, adivinhando o que ela ia dizer, dado que se acostumou com sua sensibilidade e inteligência. Em seu signo, o Dr percebeu com muita intensidade a calma e a serenidade enquanto ela pensava.
Mesmo assim, para ele, essa reposta não bastava, portanto, ainda não era tempo de parar a busca e descansar.
Foi enquanto explicava para sua filha a respeito dos signos mediais e o que significam que ele viu pela primeira vez, contornando seu corpo, uma irradiação luminosa, pálida, em tom azul e com aspecto leitoso; ele estava vendo a aura de Mamé. Nesse primeiro momento não suspeitou de nada e atribuiu a experiência a algum fenômeno espiritual que desconhecia e no qual não acreditava.
A partir desse dia ele passou a ver a aura de todas as pessoas. A de sua filha foi a primeira e por muito tempo a única que ele viu cujo aspecto lhe parecia positivo ou talvez neutro, mesmo que ele ainda não soubesse o que significavam ou se significavam algo. Todas eram tão diversas quanto os signos, variando em cor, intensidade, aspecto e opacidade ou brilho. Algumas tinham outra característica ainda mais curiosa, se assemelhando a chamas ou vibrando como as ondas que rodeiam uma pedra que caiu na água ou fazendo movimento ritmados à volta do seu portador. Tudo era novo e havia muita coisa para observar, documentar e estudar.
Fulano logo percebeu duas coisas importantes. A primeira é que aparentemente só ele via as auras; a segunda é que as câmeras as capturavam em fotos ou vídeos, mas também nesses casos só ele conseguia ver. A visão computacional de Silas também era incapaz de percebê-las.
Ele chegou a procurar alguns médicos. O primeiro foi o oftalmologista a fim de atestar a saúde dos próprios olhos e estes estavam ótimos, sua visão estava perfeita. Depois ele buscou um neurologista, talvez houvesse um câncer afetando o nervo ótico ou algo semelhante e o fazendo ver coisas que não existiam; logo uma ressonância magnética junto de uma tomografia e um eletroencefalograma provaram que o cérebro também estava saudável. Ele tentou ainda a visita a um psiquiatra, vai que ele estava alucinando e ficando maluco. Logo o médico o confortou um pouco, ao menos não havia sinal de distúrbio psiquiátrico.
Foi então que ele se deu por vencido e começou a considerar a ida a um centro espírita. Evitando vieses, decidiu ir também a um templo tibetano. Se não havia sinal de problema orgânico, só restava verificar se era algo espiritual, algo no qual ele ainda não acreditava. A essa altura não lhe restavam opções.
As primeiras visitas se deram a um centro espírita e foi então que viu com maior freqüência um tipo raro de aura. Incapaz de dizer se havia algum significado, muito menos de compreender qualquer carga lógica, seu ceticismo religioso diminuiu um pouco ao ver algumas auras tão mais suaves e radiantes do que aquelas com as quais se acostumara.
Destaque para a aura de um jovem que acompanhava uma senhora bem velhinha; ele cuidava dela com muito carinho e dedicação. Seu signo era muito discreto com poucos delitos, e mesmo estes praticados com pouca freqüência. Seu signo momentâneo parecia manifestar o sentimento de absoluta tranqüilidade e de amor, de um tipo novo para Fulano. Sempre que o Dr se via na mira do seu olhar, sentia que o jovem ouvia seus pensamentos. Nessa primeira visita o Dr não chegou a buscar atendimento nem respostas para suas perguntas, apenas saiu pensativo e tentando entender o que eram essas auras, porquê nunca tinha visto signo como o do jovem antes, ou se este era de fato capaz de perceber o que pensava.
O olho vê o que encontra eco no coração.
Foi em sua segunda visita, sem resistir à curiosidade de retornar ao centro, conversando com um dos dirigentes do lugar, que Fulano descobriu não ser nem o primeiro nem o único a ver auras, sendo apenas o primeiro a querer documentar o que via. O dirigente, apesar de ter um nome, só era chamado de Médium pelo Dr. O Médium demoradamente lhe explicou o que eram as auras. Ao menos dessa vez ele não precisou estudar e catalogar para enfim entender algo.
O Médium explicou que as auras são a manifestação dos pensamentos, por isso então sua enorme diversidade de cores, aspectos e intensidades. Alguém bem treinado na percepção das auras é capaz de saber exatamente o que alguém está pensando sem necessidade de trocar uma palavra sequer. Isso possibilita que dois interlocutores treinados possam se comunicar sem palavras, apenas com a leitura das auras e dos signos, que aliás, também não são grandes em quem possui tal habilidade.
Foi no templo tibetano que o Dr percebeu que todos pareciam capazes de ler simultaneamente os signos e as auras e traziam olhares semelhantes ao do jovem. Foi também um dos dirigentes do lugar, a partir de então chamado por ele apenas de Monge, que lhe confirmou sobre a leitura destes, mas para eles tudo era uma coisa só e sua leitura também era simultânea. Os de coração mais puro, mais dedicados e moralmente mais elevados tinham acesso à terceira visão, derivada de muito estudo e de delicada operação na fronte a partir da qual todos diante de si se faziam verdadeiros livros abertos. Os portadores da terceira visão têm pequena cicatriz circular centralizada logo acima da altura das sobrancelhas e logo abaixo do próprio signo.
Logo Fulano perdeu a vergonha e se tornou amigo dos dois dirigentes que tiveram prazer em lhe ensinar tudo sobre as auras e sua leitura. Ávido por conhecimento e metódico nas suas anotações, o Dr se mostrou excelente aluno, sempre com perguntas pertinentes e perspicazes, rapidamente compilando detalhada documentação.
Quando já era capaz de entender quase plenamente as auras, o Dr se lembrou da pergunta de Mamé: por que só as ações reprováveis marcam e permanecem?
A resposta deixou Fulano envergonhado, com a aura trêmula em tom rosa apagado. Primeiro ele perguntou ao Monge, que respondeu com um sorriso mas sem palavras, apenas com a aura:
- Ora, porque até hoje todo o seu estudo dos signos foi feito fazendo apenas perguntas negativas.
O Médium, também sorridente e também apenas com a aura deu exatamente a mesma resposta. Será que eles combinaram? Os dois pareciam estar esperando o dia em que essa pergunta finalmente seria feita e ficaram muito alegres em respondê-la.
Então ele se lembrou de como tudo começou, primeiro analisando detentos e relacionando crimes; depois expandindo para delitos não-criminais; mas nunca incluiu nas análises atitude neutras, quem dirá positivas. Até na revolução trazida por Silas com a ajuda do psicólogo ele estudou apenas as atitudes de mesma natureza, de mesmo viés: criminosas, delituosas, reprováveis.
Se “a boca fala do que está cheio o coração”, Fulano percebeu que o olho também vê o que no coração encontra eco.
Finalmente ele tinha uma explicação para Mamé e ele viu genuína alegria em seu signo, enquanto no seu próprio demoradamente viu a vergonha.